» 1971 



A vontade de superar seu melhor trabalho, abandonar fórmulas de sucesso manjadas e encarar novos desafios foi a força que retardou o surgimento de um novo trabalho do The Who por quase dois anos. Nesse meio tempo Pete Townshend visualizara através de suas apresentações o poder do rock de transformar músicos e platéia numa só força, e essa conjunção de sensações entre a banda e seu público fez aos poucos germinar em sua mente uma idéia que, se realmente concretizada, elevaria a música a um outro nível.

Mas a vontade de enfrentar o novo aparentemente não contaminara a banda por completo; Daltrey e Entwistle, particularmente, pareciam mais do que satisfeitos em continuar com o estilo "rock de arena" popularizado pelo Who nos últimos anos, encarando com ceticismo cada vez maior as idéias do guitarrista. Esse ceticismo de Entwistle era complementado por um quê de frustração por seu pouco destaque na banda, o que o levou entrementes a dar início às gravações de seu primeiro álbum solo.

O próximo projeto do Who no entanto tinha maior prioridade; a intenção de Kit Lambert era produzir o novo álbum em conjunto com um filme, conseguindo para isso um acordo com o Universal Studios de dois milhões de dólares. Com isso em mente Townshend passou a compor novas músicas, além de escrever um roteiro cinematográfico complementar a essas composições. No entanto aquelas suas primeiras idéias envolvendo a banda e seu público já então haviam evoluído - a partir de influências tão díspares quanto a ficção científica e o misticismo oriental - para um enredo que afirmava que, se o sentido da vida existia, ele estava contido em uma única nota musical.

Esse enredo, que se tornaria conhecido para a posteridade como Lifehouse, falava de um planeta Terra futurístico onde, devido à poluição, a população era forçada a viver dentro de trajes fechados, sem nenhum contato com o mundo exterior. Através desses trajes elas recebiam oxigênio, alimentação e uma programação virtual que lhes permitia vivenciar vários programas fornecidos por uma empresa chamada Plusbond. É aí que entra Bobby, um velho roadie mestre em sintetizadores e aparelhos eletrônicos que começa a projetar um concerto de rock, um experimento musical que pretendia encontrar a nota musical perfeita, e através dela forçar as pessoas a saírem de seus "casulos". Bobby usa detalhes da biografia de cada indivíduo na platéia para criar música, e, hackeando a programação da Plusbond, transmite tudo para as pessoas em seus trajes. O teatro é então invadido pelo exército, e antes de ser alvejado pelos soldados, Bobby consegue mesclar todas as músicas biográficas, alcançando a nota perfeita. Misteriosamente todos que presenciam este momento desaparecem, inclusive aqueles conectados ao concerto através dos trajes.

Para musicar esse roteiro Townshend passa os primeiros meses de 1971 num frenesi criativo sem precedentes, compondo e gravando por conta própria as canções para o projeto. Essas demos, de excepcional qualidade, estão entre as melhores que ele já produziu, e grande parte do seu trabalho no sintetizador acabou sendo mantido para uso nas gravações com o Who.

Mas as idéias abstratas de Pete eram de difícil compreensão para a maioria, fazendo com que a banda decidisse testar "fisicamente" alguns detalhes do projeto. Para isso eles firmam um trato com Frank Dunlop, diretor artístico do teatro Young Vic em South Bank, Londres, agendando então uma série de apresentações não divulgadas. Os planos de Pete eram usar o teatro numa base diária, atrair o público ocasional deixando as portas abertas enquanto a banda tocava, e compor para essas pessoas músicas sobre elas mesmas, sobre suas histórias de vida. Não se sabe se ele pretendia transformar a utopia de Lifehouse em realidade ali mesmo naquele pequeno teatro, e isso acabou por fim confundindo ainda mais Roger, Keith, John e os demais colaboradores da banda.

Com toda uma expectativa criada em torno do novo projeto do The Who após inúmeras entrevistas dadas por Townshend, a primeira apresentação no Young Vic é finalmente realizada em 14 de fevereiro. O show, que deveria ser filmado, tem apenas seu som gravado, e o projeto original de utilizar o teatro diariamente vai por água abaixo após a diretoria do local decidir que a banda só poderia tocar ali uma vez por semana. Desencorajado e desiludido, o Who ainda volta para mais duas apresentações, no dia 1 e 8 de março, mas a falta de interesse por parte do público em tomar parte no show enterra definitivamente a idéia das apresentações abertas.

Seguindo uma sugestão de Kit Lambert, o grupo decide seguir para o recém-inaugurado estúdio Record Plant em Nova York e ali tentar registrar as músicas de Lifehouse. Até esse momento Pete, que considerava o empresário seu mentor intelectual, não percebeu que perdera esse apoio ao minar as tentativas de Lambert de produzir um filme inspirado em Tommy, preferindo ao invés disso apostar suas fichas no novo projeto. Apesar da ausência de Lambert, substituído pelo produtor Felix Pappalardi, as gravações têm início em 16 de março, com Al Kooper no piano e Leslie West como convidado especial na guitarra.

Pete fica sabendo dias depois que os sumiços de Lambert do estúdio eram culpa de seu vício em heroína. Temendo que o produtor viciasse Keith Moon e insatisfeito com o progresso das gravações, ele resolve convocar uma reunião com o grupo no Navarro Hotel, onde o produtor estava hospedado. Antes de entrar no quarto de Lambert, Pete acaba escutando acidentalmente seu antigo mentor zombar dele e fazer pouco de suas idéias para o filme. A decepção é tão grande que durante a reunião Townshend acaba sofrendo um colapso nervoso, e como consequência começa a ter alucinações e quase pula de uma janela. Ele então decide abandonar o projeto - pelo bem de sua própria sanidade - e voltar para Londres levando consigo as músicas que a banda conseguira gravar até ali.

Pete entrega as fitas para que Glyn Johns as mixasse, mas ele se recusa dizendo que a produção estava abaixo dos padrões. Ao invés disso Johns propõe que a banda dê outra chance ao projeto, regravando tudo novamente com ele no comando. Sendo assim o The Who volta a se reunir em 9 de abril no Olympic Sound Studios em Barnes, Londres, para finalizar de uma vez por todas a gravação das canções de Lifehouse com o intento de lançar o filme pelo menos até o final do ano. As sessões continuam durante o mês em Stargroves, a mansão de Mick Jagger em Newbury, Berkshire, usando o estúdio móvel dos Rolling Stones. "Too Much Of Anything", "Time Is Passing", "Bargain", "Won't Get Fooled Again" e "Going Mobile" são as primeiras canções registradas nesta primeira etapa.

Já no dia 07 de maio a banda começa uma série de pequenas apresentações no Reino Unido para que pudesse trabalhar as canções complexas de Lifehouse antes de uma turnê de grande porte. O primeiro show é no Top Rank Suite em Sutherland. Voltando de Sutherland no dia seguinte a banda avista em um morro um grande bloco de concreto usado para impedir deslizamentos, e inspirados pelo monolito alienígena do filme "2001: Uma Odisséia no Espaço", decidem se fotografar para a capa do novo álbum diante do estranho bloco.

Enquanto as gravações do The Who continuam, Entwistle lança no dia 14 de maio seu primeiro álbum solo, Smash Your Head Against The Wall. Keith Moon participa da faixa "No. 29 (External Youth)", e apesar de bem divulgado pela Track Records o disco acaba não tendo muita repercussão.

No final de junho o The Who finaliza as últimas músicas de Lifehouse, contando então com material suficiente para um álbum duplo. Mesmo assim Glyn Johns continuava cético ante o potencial do projeto, não vendo nenhum fio narrativo que amarrasse todas aquelas músicas em dois discos. Townshend, mesmo sentindo que Johns estava errado, concorda em reduzir aquele que seria mais um álbum conceitual duplo na carreira da banda para um único disco com canções - para o simples ouvinte, pelo menos - aparentemente desconexas.

Esse álbum, Who's Next, o quinto de estúdio da carreira do The Who, é lançado em 14 de agosto nos Estados Unidos e no dia 25 no Reino Unido, onde alcança a primeira colocação entre os mais vendidos. Com suas letras marcantes, sua inovação no emprego de sintetizadores e a própria destreza dos músicos, complementados por uma produção excelente e uma qualidade sonora até então sem precedentes na carreira da banda, Who's Next foi (e continua sendo) aclamado pelos críticos em geral como um dos melhores discos da história do rock.

Mas apesar de superar em muito a qualidade técnica de Tommy, a banda não conseguiu desenvolver tão bem as canções de Who's Next no palco, ao contrário do que acontecera com a ópera-rock desde que ela começou a ser apresentada nos shows. Foi outro golpe para o projeto cinematográfico de Lifehouse, que necessitava de cenas ao vivo do grupo tocando as canções que ilustravam o roteiro. Mesmo assim as canções mais difíceis foram mantidas, e no final de julho o Who e seu monstruoso equipamento sonoro embarcaram para mais uma turnê pelos Estados Unidos. Enquanto as apresentações se seguiam Pete via seu sonho de realizar um filme cada vez mais distante, culpa principalmente da resistência de seus colegas de banda. Mas ao invés de se afundar em conflitos e mágoas pelo fracasso de Lifehouse, o grupo simplesmente decidiu seguir em frente e tocar, superando todas as expectativas em contrário e terminando com um álbum bem-sucedido e uma série de shows aclamados pelo público e pela crítica.

Após viajar pelo Reino Unido durante outubro, a banda retorna aos Estados Unidos em novembro, desta vez acompanhada pelo jornalista Nik Cohn. Ainda insatisfeito com o fracasso de Lifehouse, Pete continuou a botar pressão para que o Who entrasse de cabeça no mundo cinematográfico. Cohn seguiu a banda até o último show daquela turnê, no dia 15 de dezembro em Seattle, sempre observando, anotando e recolhendo material para o roteiro de um filme que pretendia refletir os aspectos essenciais da apresentação de uma banda de rock. Era mais um projeto destinado a ficar no papel... depois de um ano tão turbulento, tudo que a banda queria naquela momento era um merecido e necessário período de férias.



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Ilustrações por Marco Antônio Monteiro | Textos por Vinícius Mattoso | © Todos os direitos reservados
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