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Ainda colhendo os frutos de sua aparição no Festival de Woodstock - que os apresentou a platéias ainda mais amplas graças à subseqüente versão cinematográfica do evento hippie - o The Who que despontou nesta nova década foi para muitos um The Who em seu auge como banda ao vivo. O que ninguém contesta é a evolução musical sofrida por Pete Townshend, Roger Daltrey, John Entwistle e Keith Moon nos poucos meses em que apresentaram Tommy ao vivo ao redor da América e Europa; além de trazer um bem-vindo e necessário retorno financeiro, a história do garoto cego, surdo e mudo emprestou uma quantidade ainda maior de vida, impacto e energia aos espetáculos do The Who. Mas nem tudo eram flores, como o incidente nos primeiros dias de janeiro que marcaria um deles para o resto da vida...

No dia 4, Keith Moon viaja na compania de sua esposa Kim, seu amigo "Legs" Larry Smith (baterista da Bonzo Dog Doo-Dah-Band) e a namorada de Smith, todos conduzidos pelo motorista e segurança particular de Keith, Neil Boland, para a inauguração de uma discoteca em Hatfield, Inglaterra. A festa corre solta e na saída, quando já se preparavam para entrar no carro de Keith e voltar pra Londres, o grupo é cercado e hostilizado por um bando de jovens. A causa do incidente é até hoje motivo de controvérsia; enquanto uns dizem que os jovens eram uma gangue de skinheads que ofenderam e tentaram agredir de forma gratuita os ocupantes do carro, outros alegam que aqueles na verdade eram jovens da vizinhança curiosos com a movimentação, que apenas reagiram à forma esnobe com que foram tratados. De qualquer maneira a confusão estava instaurada, e quando Neil desce do Bentley para abrir caminho, é rapidamente nocauteado pela multidão. Keith, em pânico, dá partida no carro enquanto Smith tenta passar para o banco da frente, uma vez que seu colega não sabia dirigir. Eles param alguns metros adiante para tentar conseguir ajuda, e quando Keith sai o motorista de uma van lhe diz que havia alguém debaixo do carro. Ele olha. Era Boland, preso nas engrenagens, seu crânio esmagado. Um prato cheio para os sedentos tablóides britânicos, que no dia seguinte estampam em suas principais manchetes a história do astro do rock rico e bêbado que atropelou o próprio motorista.

Apesar de saber que fora um acidente - e mesmo sendo inocentado pelos tribunais no mês seguinte, em 20 de fevereiro - Keith nunca conseguiu superar por completo o episódio. De fato, é nessa época que ele começa a se perder no labirinto das drogas, um desvio que mais tarde traria consequências ainda mais trágicas para sua vida.

A agenda de gravações da banda durante esta semana é cancelada devido à morte de Boland. Ao invés disso, no dia 6, Damon Lyon-Shaw começa a preparar no IBC Studios em Londres a mixagem preliminar de um álbum ao vivo do Who, que seria tirado das fitas de dois canais gravadas por Bob Pridden durante todos os shows da turnê norte-americana de outubro/novembro e de mais cinco datas na Europa durante dezembro de 1969. A intenção de Pete Townshend era revisar essas fitas após a turnê e compilar os melhores momentos para um disco ao vivo, o primeiro da carreira do Who, mas com o trabalho se aproximando ele percebeu que seria impossível sentar e encarar 240 horas de gravação sem perder totalmente a objetividade. A pilha de fitas é então reunida e, para não correr o risco de ter seus shows pirateados, a banda decide queimar tudo numa fogueira gigante. Para facilitar as coisas e conseguir de vez a gravação, duas apresentações são marcadas para o mês seguinte - uma na Universidade de Leeds e outra no City Hall de Hull.

Antes disso, em 19 de janeiro, o Who segue para o mesmo IBC Studios para registrar seu primeiro trabalho pós-Tommy: "The Seeker". Pete toca guitarra e piano, além de produzir sozinho a faixa, reflexo do distanciamento cada vez maior de Kit Lambert, produtor, empresário e mentor intelectual do grupo - decepcionado por ver seus planos de um filme sobre a ópera-rock irem por água abaixo após o veto de Townshend ao projeto. Também é gravada nesta sessão a segunda música inteiramente composta por Roger, "Here For More". Alcançando a 19ª colocação no Reino Unido e a 44ª nos Estados Unidos, o compacto "The Seeker" / "Here For More" foi praticamente um fracasso se comparado ao êxito comercial e de crítica alcançado com o álbum anterior do grupo. Mais do que isso, "The Seeker" representou uma mudança no estilo de composições de Townshend; ao invés de refletir as inseguranças e frustrações de seus fãs, ele aqui expressava um dilema pessoal: não só a incerteza de quando dar o próximo passo adiante, mas a dúvida de como conciliar a vida de um rockstar milionário permanecendo fiel a antigos ideais enraizados e reforçados ainda mais pelos ensinamentos espirituais de Meher Baba.

Outro reflexo das contradições enfrentadas por ele foram os shows realizados pelo Who no final de janeiro. Na crista da onda de Tommy e sua reverberação em diversos círculos intelectuais, o grupo consegue agendar meia dúzia de apresentações nas principais casas de ópera da Europa, a começar pelo Theatre des Champs Elysées em Paris - fazendo do The Who a primeira banda de rock a tocar no célebre teatro francês.

O prestígio era tanto que até reis (a família real dinamarquesa no Der Kunglige Teater em Copenhagen) e chefes de estado (o presidente e o chanceler da Alemanha no Stadt Opera House em Colônia) marcaram presença nesses shows. "Era como tocar para quadros na parede", resumiu bem Keith Moon. Cansado da platéia quase que totalmente composta de milionários, políticos e VIPs em geral, Pete decidiu que era hora de dar um basta naquilo e voltar a encarar um público de verdade. E foi o que o The Who fez em seus dois únicos shows de fevereiro, ambos realizados em locais mais do que modestos se comparados à opulência das casas de ópera que o grupo acabara de visitar, embora encarados com igual ou maior importância.

O primeiro, realizado para as 1,500 cabeças que lotaram o refeitório da Universidade de Leeds, registra nas fitas de oito canais do estúdio móvel Pye Mobile um The Who no auge de sua forma, cru, violento e ao mesmo tempo magnificamente prodigioso tecnicamente, mandando ver um set que com o avançar de suas duas horas e meia vai levando à loucura os estudantes da célebre universidade. O show em Hull no dia seguinte não deixa de ter o mesmo impacto, mas um defeito na gravação - o baixo não foi registrado nas fitas - torna a gravação praticamente imprestável, delegando a Leeds (cujo registro também teve seus percalços, com estalos e distorções por toda a parte) a responsabilidade de representar o poderoso som ao vivo do The Who. O lançamento de Live at Leeds em 23 de maio desmistifica de uma vez por todas a aura artístico-intelectual pomposa que se formara ao redor da banda após o surgimento de Tommy.

Com o dever-de-casa feito o grupo empenha os dois meses seguintes em idéias para reformular suas apresentações, retirando quase que completamente a ópera-rock do roteiro ao vivo e tentando readaptar seu set agora padrão de duas horas e tanto com outras músicas que tivessem igual impacto. O Who passa o resto do ano em turnês esporádicas enquanto novas composições de Pete vão sendo encaixadas nos shows, e Tommy é finalmente limado - para alívio da banda, já desgastada após quase dois anos do mesmo set - numa apresentação no The Roundhouse em Londres no dia 20 de dezembro.

No final Leeds representou mais do que tudo uma pausa para que o grupo pensasse e elaborasse seu próximo projeto. Com o sucesso recente, Townshend visualizara o poder do rock de arrebanhar multidões, e sua fé nesse estilo musical como um meio congregacional - num sentido praticamente religioso - o levou ao limiar de um novo plano, um projeto que transcenderia fronteiras pré-estabelecidas na música e fundiria a banda e sua platéia numa só massa. Com tudo esquematizado em sua cabeça (um álbum multimídia complementado por um filme e shows que explorariam a interação do grupo com seus fãs a partir de efeitos sonoros sintetizados) o único problema para Pete agora era explicar a seus colegas de banda o que ele pretendia, um plano que, se mal interpretado, corria o risco de nunca ter a chance de ser realizado...



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Ilustrações por Marco Antônio Monteiro | Textos por Vinícius Mattoso | © Todos os direitos reservados
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