» 1968 



1968 foi um ano estranho para o The Who. Enquanto nos Estados Unidos sua reputação era considerável como um dos grupos mais impactantes do underground musical britânico - principalmente devido ao repertório abrangente e shows de tirar o fôlego - em sua terra natal a situação era justamente contrária, com o cachê das apresentações diminuindo enquanto as dívidas aumentavam vertiginosamente. Uma mudança de direção se fazia cada vez mais necessária.

E foi com a idéia de renovação que o Who embarcou para uma turnê de 13 datas - número representativo do que estaria por vir - pela Austrália e Nova Zelândia, juntamente com os companheiros Mods do Small Faces e de Paul Jones (ex-vocalista do Manfred Mann). Fatigado pela longa viagem de 36 horas, o grupo desembarca na Austrália em 20 de janeiro, sendo prontamente recebido por uma coletiva de imprensa formada em sua maioria por jornalistas revoltados com os cabeludos estrangeiros que vinham tirar dinheiro da combalida economia local. Encarados com questões como "É verdade que vocês são viciados?" e "O que vocês acham da desvalorização da libra esterlina?", os surpresos músicos pouco podem fazer para se defender antes de serem mandados para o próximo destino; havia um show marcado na mesma noite no Festival Hall em Brisbane, Queensland. Tudo vai bem até o jornal local do dia seguinte afirmar que "O The Who é culpado de diminuir o volume para os caipiras". A cobertura jornalística a partir de então só pioriaria.

Mas a imprensa não era a única pedra no sapato: para economizar nas despesas de viagem a banda decidiu não carregar consigo seus equipamentos, utilizando ao invés disso instrumentos e amplificadores locais, os quais, diga-se de passagem, não passavam de lixo, igualados pelo sistema de microfonia e transmissão de som dos teatros, alguns datando da Segunda Guerra. Os dias 22 e 23 são dedicados aos principais shows, no Estádio de Sydney. Tocando em um palco giratório, o peso do equipamento do Small Faces estraga o mecanismo, e o Who tem de se apresentar num palco pela metade, com a visão de grande parte da platéia bloqueada. O ritual de destruição de instrumentos - que ia sendo aos poucos deixado de lado - foi retomado aqui com todo gosto. Ainda bombardeados pela imprensa, que exigiam investigações da polícia devido ao uso de palavrões nos shows, as duas bandas descontam a frustração de maneira violenta, com Pete Townshend destruindo câmeras de fotógrafos e socando jornalistas no nariz e Keith Moon e Steve Marriott (vocalista do Small Faces) quase parando na cadeia após despejarem todo o conteúdo de seus quartos de hotel pela janela. A epopéia pela Austrália vai até 27 de janeiro com o último show no Centennial Hall em Adelaide. Às sete da manhã do dia seguinte eles embarcam para Sydney, mas a despedida não seria assim tão comovente: a aeromoça, crendo na publicidade negativa dos músicos e incomodada com a garrafa de cerveja que passava de mão em mão, recusa-se a servir o grupo. Xingada por um deles, ela reclama ao piloto, que pousa no aeroporto mais próximo e faz com que a equipe de dezenove pessoas seja escoltada para fora por duas fileiras de policiais. O grupo é obrigado a alugar um avião, e é acompanhado a bordo por dois seguranças aéreos portando escopetas. Já em Sydney eles seguem para Auckland, Nova Zelândia, dezesseis horas depois de terem deixado Adelaide. No dia seguinte a imprensa australiana tem um dia cheio relatando a beligerância dos selvagens cabeludos ingleses. Pete anuncia que pretende nunca mais retornar à Austrália, promessa que mantém por 36 anos até que, em agosto de 2004, o The Who volta a pisar no país.

Três semanas depois de voltar pra casa a banda estava mais uma vez na estrada, agora numa turnê de nove semanas pelos Estados Unidos e Canadá, sua primeira como banda principal. Realizada na maior parte em colégios e salões de dança, a turnê tem início em San Jose em 21 de fevereiro, seguida por mais três shows em São Francisco, durante os quais são feitos gravações para um suposto álbum ao vivo. Durante uma pausa para descanso antes de seguir para o Canadá, a banda faz uma parada em Hollywood para gravar "Call Me Lightning" e "Little Billy", esta última uma canção anti-tabagista feita especialmente para a American Cancer Society. Ela acabaria sendo rejeitada, talvez por seus versos estranhos mas provavelmente devido ao fato de pelo menos três integrantes da banda serem fumantes. Os demais shows são realizados - sem grandes incidentes, à parte as bombas explosivas de Keith nos hotéis - e a primeira turnê norte-americana do The Who termina em 7 de abril em Toronto.

Com o projeto do álbum ao vivo abandonado, a banda é deixada sem rumo e passa o mês de maio nos estúdios gravando um novo compacto. O lançamento do fraco "Dogs" em junho demonstrou a falta de material consistente do grupo, seguido por "Magic Bus", que teve desempenho ainda pior nas paradas de sucesso. Afundados em dívidas de mais de 50,000 libras o Who viu a urgência de dar o próximo e decisivo passo, discutindo a idéia de realizar um programa ao estilo Monkees para a TV britânica e um novo álbum, Who's For Tennis, a ser lançado durante o torneio de Wimbledom. Ambos os projetos são cancelados. Desanimado de continuar a compor canções individuais para serem lançadas em compacto, Pete começou a pensar em realizar algo com mais substância, um projeto maior e mais ambicioso.

As inclinações de Pete em direção a esse novo projeto para o The Who coincidiram com sua descoberta dos ensinamentos do guru indiano Meher Baba. A atração do guitarrista pela doutrina de Baba aconteceu numa época em que era moda celebridades divulgarem sua afinidade com mestres orientais, mas o interesse de Townshend ia muito além desse frenesi momentâneo que surgiu na sociedade ocidental após o flerte dos Beatles com Maharishi Yogi em 1967. Em primeiro lugar, Baba não era parte da escola pomposa de gurus que se baseavam em ioga e meditação para alcançar a graça transcedental. E em segundo, Townshend se entregou completamente aos ensinamentos de Baba, no que se tornaria uma devoção para o resto da vida. Baba essencialmente oferecia, através da reza e da fé, meios de auto-suficiência e uma proximidade mais íntima de Deus. Inspirado por seu recém-descoberto caminho religioso, Pete começou a idealizar uma série de canções interligadas que traziam como tema a jornada espiritual humana. Um poema escrito por ele meses antes, "Amazing Journey", com mais de 230 versos, formou o núcleo do novo projeto. A partir daí outras canções foram sendo incorporadas, seguida por mais uma turnê norte-americana, desta vez com 41 shows. Mas isso não impediu o processo criativo: mesmo durante a turnê, em quartos de hotel, camarins, na casa de amigos e até mesmo em aviões Pete Townshend continuava a dilapidar suas idéias. Após compor novas músicas e muito discutir com a banda os vários aspectos, o projeto começou a tomar forma definitiva em agosto, fato ainda mais enfatizado após uma entrevista para a revista Rolling Stone, onde Pete descreveu os detalhes de seu Deaf, Dumb and Blind Boy, a história de um garoto que se torna cego, surdo e mudo e a partir daí passa a assimilar suas sensações como música, enquanto seus pais buscam uma cura recorrendo a inúmeros artifícios. Com essa sinopse em mãos e a conclusão da turnê em setembro, o trabalho da banda passou a ser muito mais idealístico do que real; Pete, Keith, John e Roger e o empresário Kit Lambert perdiam mais tempo discutindo os detalhes da história e a inclusão ou não de efeitos sonoros e de instrumentos orquestrais do que propriamente gravando. O papel de Lambert então foi primordial.

Filho do compositor de música clássica Constant Lambert, Kit viu no projeto, então ironicamente taxado de "ópera-rock", uma oportunidade de usurpar o sistema musical vigente, incorporando idéias, sugerindo temas e estimulando as composições de Pete, expandindo em muito seu papel de produtor do álbum. Ele até mesmo escreveu um roteiro cinematográfico para clarificar certos aspectos da história, distribuindo-o aos integrantes da banda que, enquanto isso alternavam a gravação com pequenos shows pelo Reino Unido para manter as contas em dia. A mesma preocupação em relação às contas era compartilhada pela gravadora da banda. Enquanto o novo álbum não vinha, a Decca aproveitou para jogar no mercado sem nenhuma cerimônia duas coletâneas, Direct Hits (nos EUA) e Magic Bus (no Reino Unido), cujo valor como um resumo de carreira do Who é altamente duvidoso, uma vez que não inclui nenhum material da era Brunswick do grupo ("My Generation", "I Can't Explain", etc.) devido aos desentendimentos com Shel Talmy. A banda, sem envolvimento oficial no lançamento, ficou profundamente irritada com o fato, na época considerando aqueles os piores álbuns de sua carreira.

Mas um ano que começou de forma tão negativa até que teria um final esperançoso, sinalizando que bons tempos estariam por vir: em dezembro o The Who junta-se ao Rolling Stones num projeto chamado Rock and Roll Circus, que pretendia apresentar as bandas num formato de circo itinerante, começando com um especial de TV gravado no dia 14 em Londres. O Who registra diversos takes de sua mini-ópera "A Quick One", cada um melhor do que o outro - de certa forma eclipsando a performance preguiçosa dos Stones, que no final desistiu do projeto. Mas isso não era problema; a vinda de um novo messias mobilizaria platéias muito mais gigantescas do que meros espectadores televisivos...



« 1967 | home | 1969 »



Ilustrações por Marco Antônio Monteiro | Textos por Vinícius Mattoso | © Todos os direitos reservados
the who brasil | mam-design | ronca ronca | cotidiano blues | fotolog