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Posso ver por milhas

Para coincidir com o lançamento de A Quick One, o The Who resolve alterar completamente sua performance: as bombas de fumaça, guitarras arrebentadas e baterias chutadas e arremessadas em direção à platéia, tudo isso era abandonado em prol de um show firmado nas técnicas cada vez mais refinadas de cada instrumentista, aspecto refletido numa mudança completa de setlist após dezoito meses das mesmas músicas.

É 22 de março de 1967, e a Invasão Britânica na América ganha mais um capítulo quando o Who aterrisa em Nova York. Três dias depois eles iniciam uma jornada de cinco shows diários no programa musical de Murray The K. Um minuto e meio para "I Can't Explain", um minuto e meio para "Substitute" e um minuto e meio para "My Generation", arrebentar tudo e sair do palco; essa foi a rotina por nove dias consecutivos para a banda. O ritual de destruição foi retomado, muito para o prazer dos americanos. Enquanto na Inglaterra Pete Townshend era muitas vezes alvo de críticas por detonar sua guitarra, nos Estados Unidos ele passou a ser considerado uma espécie de herói por fazer o mesmo. E as frágeis Rickenbackers foram deixadas de lado para dar lugar às resistentes e mais baratas Fender Stratocasters.

A banda volta pra casa em abril para promover o lançamento de "Pictures of Lily". Seria a primeira gravação do Who a sair pela Track Records, a nova aventura financeira de Kit Lambert e Chris Stamp, que logo reuniria artistas como Jimi Hendrix, Arthur Brown e John's Children. Após uma breve turnê européia com datas na Alemanha e Escandinávia, a banda toca na Universidade de Oxford em 27 de maio para uma platéia de ricos pré-graduados que compareceram de smokings e vestidos de baile. O Who faz tanto para assustar os burgueses que Keith, após tocar como um condenado e mandar sua bateria pelos ares, acaba rompendo a parede do estômago. Foi mais uma baixa para a banda: John Entwistle havia quebrado um dedo de sua mão direita semanas antes ao socar a foto de um "famoso cantor pop" colada numa parede. A gravação de um novo álbum é adiada.

Em meados de junho, já plenamente recuperado, o The Who retorna aos Estados Unidos para alguns shows, inclusive duas noites no Fillmore West de Bill Graham em São Francisco. Além de impressionar pelo profissionalismo de Graham e o ótimo sistema sonoro do Fillmore, essas apresentações representaram uma mudança importante no set da banda. Requisitados para tocar por uma hora e meia, quando até então só o faziam por não mais que trinta minutos, o Who foi forçado a explorar todo seu repertório, voltando a tocar velhas músicas e a ensaiar novas. A próxima data em sua agenda estava destinada a se tornar uma lenda: o Festival Pop de Monterey, na Califórnia.

O evento de três dias, presenciado por mais de 200,000 pessoas, foi a representação definitiva do Verão do Amor hippie. O Who sobe ao palco no último dia, 18 de junho, não antes de se envolver numa disputa nos bastidores com Jimi Hendrix para ver quem tocava primeiro. Hendrix, apesar de sua excelente técnica, havia se "apropriado", para dizer o mínimo, de muitos dos maneirismos de Townshend, como o feedback, a prática de socar a guitarra nos amplificadores e de destruir a mesma após os shows. O Who ganha a parada mas, insatisfeitos com o som de seus instrumentos emprestados, dão tudo de si no clímax de destruição que se segue. A multidão da paz e do amor é deixada pra trás boquiaberta. Mas esse não seria o único trauma daquele fim de semana. No backstage Pete conhece Owsley Stanley, criador do poderoso alucinógeno STP, e na viagem de volta à Inglaterra, pensando que aquilo era LSD, ele experimenta uma amostra que ganhara do químico. Pete passa por uma viagem terrível, permanecendo mais de quatro horas fora de si, terrificado. O incidente faz com ele decida abandonar de vez as drogas psicodélicas, idéia reforçada mais tarde por sua descoberta dos ensinamentos do mísitico indiano Meher Baba e sua doutrina anti-alucinógenos.

Nos dois meses seguintes o Who retoma as gravações de um novo álbum, antes de iniciar uma turnê de bolso pelos EUA numa bizarra combinação com o grupo de apelo adolescente Herman's Hermits. Bizarra inclusive para a platéia, que não esperava exatamente uma banda de abertura de tal calibre. Detonando seu set de 30-40 minutos sem pausas nem aplausos, o Who geralmente deixava atrás de si um público totalmente embasbacado. Era mais um passo adiante para a banda, reforçado por seus novos equipamentos Marshall e o kit de bateria "Pictures of Lily" de Keith feito sob medida pela Premier. Só o lado financeiro não estava exatamente satisfatório, principalmente depois da festa de vigésimo-primeiro aniversário de Moon em Flint, Michigan. Numa orgia de destruição de carros com extintores, guerra de bolo e convidados na piscina, terminando com Keith no dentista após cair e perder um dente da frente, centenas de dólares tiveram de ser deixados como compensação no hotel Holiday Inn. E mais uma lenda do estilo de vida rock'n'roll era criada.

Já então eram fins de agosto, e apesar do muito tempo gasto no estúdio a banda ainda não tinha planos para o novo disco. Mas isso não duraria muito: pressionado por Chris Stamp, que queria um novo lançamento pela Track a qualquer custo, Pete surge com o conceito de um álbum no formato de uma transmissão de rádio pirata. O plano original incluía vender espaço publicitário entre as canções mas, quando somente a Coca-Cola concordou, ainda assim pagando apenas com uma caixa de refrigerantes, a idéia evoluiu para a sátira de tais comerciais, tudo intercalado entre as músicas.

O dia 14 de outubro de 1967 marca o lançamento de I Can See For Miles. Cuidadosamente trabalhada pelo Who, que esperava obter então o compacto de maior sucesso de sua carreira, a canção não passou do décimo lugar nas paradas de sucesso, uma grande decepção para Pete. A seguir veio o terceiro álbum da banda, The Who Sell Out. Lançado em dezembro e bem recebido pelos críticos - apesar de não se sair melhor nas vendas do que seus predecessores - o álbum não era exatamente um retrato fiel das apresentações ao vivo do grupo na época, principalmente depois da exclusão de três versões de músicas de Eddie Cochran ("Summertime Blues", "C'mon Everybody" e "My Way"), o que daria um lado muito mais rock em contraste a baladas como "Our Love Was" e "I Can't Reach You" ou a canções cômicas como "Odorono" e "Mary Anne With The Shaky Hands". Mas isso não impediu que aquele se tornasse um verdadeiro clássico entre os fãs.

Com o ano chegando ao fim, o Who se via, após duas longas turnês, numa posição respeitável como banda ao vivo nos Estados Unidos .Inspirados, eles decidem expandir seus horizontes ao embarcar num ônibus não-exatamente mágico para regiões inóspitas e até então nunca explorados por nenhuma banda de rock...



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Ilustrações por Marco Antônio Monteiro | Textos por Vinícius Mattoso | © Todos os direitos reservados
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